sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas
essas ficarão!
(poema de Carlos Drumond de Andrade)

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Temos ouvidos e lemos

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar.

Vemos, ouvimos e lemos
Relatório da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de hiroshima
vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D´África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado!
(tema musicado da autoria de Sophia de Melo B. A.)

domingo, 24 de novembro de 2013

A voz do moinho

Quando eu era moço e cria
que o mundo era todo meu
e com a minha alegria
enchia a Terra eo Céu,

num cerro perto gemia
um moinho: e enquanto eu
era feliz, noite e dia
triste, o moinho gemeu.

Eu ria, sem um cuidado;
Mas do moinho a buzina
 chorava num tom magoado!

Hoje, como no passado,
discordante é nossa sina:
- Eu choro... ele está calado!
(autor: Cristóvão Aires)


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

masmorra

Na masmorra de mim mesmo
ora choro ora canto
canto por ti quando choras
choro por ti se tu cantas

quando choras...de certeza
que o teu choro é de alegria
sei que cantas de tristeza
quando a alma vazia
nos teus olhos fica presa

abre os olhos e sorri
deixa a alma libertar-se
não mostres que tudo em ti
não é mais que um disfarce

na masmorra onde moro
sinto que choras cantando
se cantas também eu choro
e cantando eu vou chorando

(autor: Tibério Gil)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A sombra sou eu

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
(autor: Almada Negreiros)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Cidade, Rumor e Vaivém



Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
montanhas sem nome e planícies mais vastas
que o mais vasto desejo,
e eu estou em ti fechada e apenas vejo
os muros e as paredes, e não vejo
nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
e que arrastas pela sombra das paredes
a minha alma que fora prometida
às ondas brancas e às florestas verdes.
(autor: Sophia de Mello Breyner Andresen)

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A minha aldeia

Homens que trabalhais na minha aldeia,
Como as árvores, vós sois a Natureza.
E se vos falta, um dia, o caldo para a ceia
E tendes de emigrar,
Troncos desarreigados pelo vento,
Levais terra pegada ao coração.

E partis a chorar.
Que sofrimento,
Ó Pátria, ver crescer a tua solidão!
(autor: Teixeira de Pascoais
1898)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

caiu de chofre no rio
o sol

riram de vermelho amarelo e roxo
as ervas

estendem os braços e acariciam as águas
os salgueiros

gargarejam no leito
as pedras

riram as malvas e os lírios na margem

alvoraçadas as águas sussurram
impando nas pedras

sujo e triste
indiferente e manso
o Tejo
prossegue o caminho
do mar

lá onde há-de vestir-se de azul
enrendilhado de espuma
irá beijar as costas dos continentes

e nunca mais voltará a ser
o rio Tejo
que lambia a minha aldeia
(autor: Tibério Gil)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Kyrie

Em nome dos que choram
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!
(autor: Ary dos Santos)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Se equivocó la paloma

Se equivocó la paloma.
Se equivocaba.
Por el ir al norte, fue al sur.
Creyó que el trigo era agua
Se equivocaba.

Creyó que el mar era el cielo;
que la noche, la mañana.
Se equivocaba.

Que las estrellas, rocío;
que la calor; la nevada.
Se equivocaba.

Que tu falda era tu blusa;
que tu corazón, su casa.
Se equivocaba.

(Ella se durmió en la orilla.
Tu, en la cumbre de una rama)
(Rafael Alberti)

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Ser doido-alegre

Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p´ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!

Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade.
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.

Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso...

Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P´ra suportar melhor quem tem juízo.
(António Aleixo)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Prosa poema

" Não choveu.
 Não se acumularam nuvens no céu naquela noite.
Dezembro era mês de festa na cidade e no cais.
Mas a lua não apareceu,
a cor  cinza do céu
não ficou azul com a chegada da noite.
O vento escurecia tudo.
valia como a chuva, os raios, os trovões, fazia o papel de todos,
aquela noite era ele só.
Ninguém ouvia a canção que Jeremias cantava,
o vento a dispersava.
Os velhos marinheiros olhavam as velas que entravam.
Vinham numa velocidade demasiada,
era preciso ser bom mestre de saveiro
para saber parar um barco no cais numa noite assim.
E vários estavam no mar largo ainda,
outros velejavam para a boca da barra,
vinham do rio.
O vento é o mais terrível dos dominadores do cais.
Ele encrespa as águas,
gosta de brincar com os saveiros,
de fazê-los voltear no mar,
destroncando os pulsos
daqueles que vão nos lemes.
Aquela noite era dele.
Começou apagando as lanternas,
deixando o mar sem suas luzes.
Só o farol piscava ao fundo, indicando o caminho.
Mas o vento levava para caminhos errados,
desviava-os da sua rota,
trazia-os para o mar largo,
onde as ondas eram fortes de mais para um saveiro.
Ninguém ouve a canção que o velho soldado canta
no forte abandonado.
Ninguém vê a luz da lanterna
que ele colocou no parapeito da ponte que entra pelo mar.
O vento apaga tudo, tudo destrói:
as lanternas
as canções."

(excerto de "mar morto" de Jorge Amado)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Homem transportando o cadáver de uma mulher

Quis-te tanto que gostei de mim!
Tu eras a que não serás sem mim!
Vivias de eu viver em ti
e mataste a vida que te dei
por não seres como eu te queria.
Eu vivia em ti o que em ti eu via.
E aquela que não será sem mim
tu viste-a como eu
e talvez para ti também
a única mulher que eu vi!

(inédito de Almada Negreiros)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Em branco

tenho um livro de folhas brancas
à espera
que eu as suje de palavras
que ninguém há-de entender

fico horas e horas a ler
folhas em branco que não escrevo

um livro que é só meu

quem quiser
que as leia como eu
e como estão
e nelas sinta tudo aquilo com que sonhei
e por birra de criança
ou sei lá se por vingança
não escrevi nem escreverei!

(Tibério Gil)

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Poetas

Ai alma dos poetas
Não as entende ninguém,
São almas de violeta
Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,
Como estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito
Dores amargas secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas.

E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma para sentir
A dos poetas também!
(Florbela Espanca)

terça-feira, 4 de junho de 2013

Voz de outono

Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
 - "Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima soidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel
deveza, Do que embalar-te a Fada da beleza,
Como embalou, no berço da ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste" 

Antero de Quental

domingo, 31 de março de 2013

A Chuva desce a ladeira

A água da chuva desce a ladeira.
É uma água ansiosa.
Faz lagos e rios pequenos, e cheira
a terra ditosa.

Há muitos que contam a dor e o pranto
de o amor os não qu´rer...
mas eu, que também não os tenho, o que canto
é outra coisa qualquer.
                                                             (de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 29 de março de 2013

Na tenda da florista

Um homem entra na tenda da florista
e escolhe flores
a florista embrulha as flores
o homem leva a mão ao bolso
para tirar o dinheiro
o dinheiro para pagar as flores
mas ao mesmo tempo também
subitamente
a mão ao coração
e cai.

Ao mesmo tempo que cai
o dinheiro roda pelo chão
e caiem também as flores
ao mesmo tempo que o homem
ao mesmo tempo que o dinheiro
e a florista fica ali
diante do dinheiro que roda
diante das flores espalhadas
diante do homem que morre.

Sem dúvida que tudo é muito triste
é necessário que a florista
faça algo
mas não sabe o que fazer
não sabe
por onde começar.

Há tantas coisas por fazer
com esse homem que desfalece
essas flores que murcham
e esse dinheiro
esse dinheiro que roda
que não deixa de rodar.
 ( de Jacques Prévert)

quinta-feira, 28 de março de 2013

Deve chamar-se tristeza

Deve chamar-se tristeza
isto que não sei que seja
que me inquieta sem surpresa
saudade que não deseja.

Sim, tristeza - mas aquela
que nasce de conhecer
que ao longe está uma estrela
e ao perto está não a ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
de entre as mãos ricas de pó.
(de Fernando pessoa)

quarta-feira, 27 de março de 2013

Canção de outono


Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão...

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...
(de Cecília Meireles)

terça-feira, 26 de março de 2013

Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
(de Mário Quintana)

segunda-feira, 25 de março de 2013

Cântico negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse.
Quando me dizem: "vem por aqui!" 
Eu olho-os com olhos lassos
(Há nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta: 
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem- vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos
redemoinhar aos ventos,
como farrapos, arrastar os pés sangrentos
A ir por aí!
(de José Régio)

domingo, 24 de março de 2013

Sem regresso

Tomou na vida o autocarro errado
e em vez de sair na primeira paragem
continuou a viagem
para nenhum lado.

Perdeu-se do passado que não teve
e do futuro que não tem,
mero episódio de novela breve
que não acaba bem.

E um fumo pesado e espesso
diz-lhe que não há regresso.
(de Turquato da Luz, falecido hoje)

sábado, 23 de março de 2013

Voz que se cala

Amo as pedras, os astros e o luar
que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera, que entende a voz do muro
e dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...
(de Florbela Espanca)

sexta-feira, 22 de março de 2013

O Nero dos meus sonhos

sou o Nero dos meus sonhos
louco de pé no terraço
soltando berros medonhos
pelos sonhos que desfaço

meus sonhos servem de pasto
às labaredas da torre
não deixarei nem o rasto
de nenhum sonho que morre

minha torre de babel
não há livro nem compêndio
 não há tinta nem pincel
que descreva este incêndio

sou o nero dos meus sonhos!
(de Tibério Gil)

quinta-feira, 21 de março de 2013

O relógio

Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.
( de Ary dos Santos)

Introdução

Este blog destina-se a homenagear os poetas da minha preferência, divulgando as suas obras. Inclui poetas do passado e do presente, destes, os que se vão evidenciando na blogosfera.