terça-feira, 24 de setembro de 2013

Kyrie

Em nome dos que choram
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!
(autor: Ary dos Santos)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Se equivocó la paloma

Se equivocó la paloma.
Se equivocaba.
Por el ir al norte, fue al sur.
Creyó que el trigo era agua
Se equivocaba.

Creyó que el mar era el cielo;
que la noche, la mañana.
Se equivocaba.

Que las estrellas, rocío;
que la calor; la nevada.
Se equivocaba.

Que tu falda era tu blusa;
que tu corazón, su casa.
Se equivocaba.

(Ella se durmió en la orilla.
Tu, en la cumbre de una rama)
(Rafael Alberti)

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Ser doido-alegre

Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p´ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!

Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade.
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.

Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso...

Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P´ra suportar melhor quem tem juízo.
(António Aleixo)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Prosa poema

" Não choveu.
 Não se acumularam nuvens no céu naquela noite.
Dezembro era mês de festa na cidade e no cais.
Mas a lua não apareceu,
a cor  cinza do céu
não ficou azul com a chegada da noite.
O vento escurecia tudo.
valia como a chuva, os raios, os trovões, fazia o papel de todos,
aquela noite era ele só.
Ninguém ouvia a canção que Jeremias cantava,
o vento a dispersava.
Os velhos marinheiros olhavam as velas que entravam.
Vinham numa velocidade demasiada,
era preciso ser bom mestre de saveiro
para saber parar um barco no cais numa noite assim.
E vários estavam no mar largo ainda,
outros velejavam para a boca da barra,
vinham do rio.
O vento é o mais terrível dos dominadores do cais.
Ele encrespa as águas,
gosta de brincar com os saveiros,
de fazê-los voltear no mar,
destroncando os pulsos
daqueles que vão nos lemes.
Aquela noite era dele.
Começou apagando as lanternas,
deixando o mar sem suas luzes.
Só o farol piscava ao fundo, indicando o caminho.
Mas o vento levava para caminhos errados,
desviava-os da sua rota,
trazia-os para o mar largo,
onde as ondas eram fortes de mais para um saveiro.
Ninguém ouve a canção que o velho soldado canta
no forte abandonado.
Ninguém vê a luz da lanterna
que ele colocou no parapeito da ponte que entra pelo mar.
O vento apaga tudo, tudo destrói:
as lanternas
as canções."

(excerto de "mar morto" de Jorge Amado)