domingo, 31 de março de 2013

A Chuva desce a ladeira

A água da chuva desce a ladeira.
É uma água ansiosa.
Faz lagos e rios pequenos, e cheira
a terra ditosa.

Há muitos que contam a dor e o pranto
de o amor os não qu´rer...
mas eu, que também não os tenho, o que canto
é outra coisa qualquer.
                                                             (de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 29 de março de 2013

Na tenda da florista

Um homem entra na tenda da florista
e escolhe flores
a florista embrulha as flores
o homem leva a mão ao bolso
para tirar o dinheiro
o dinheiro para pagar as flores
mas ao mesmo tempo também
subitamente
a mão ao coração
e cai.

Ao mesmo tempo que cai
o dinheiro roda pelo chão
e caiem também as flores
ao mesmo tempo que o homem
ao mesmo tempo que o dinheiro
e a florista fica ali
diante do dinheiro que roda
diante das flores espalhadas
diante do homem que morre.

Sem dúvida que tudo é muito triste
é necessário que a florista
faça algo
mas não sabe o que fazer
não sabe
por onde começar.

Há tantas coisas por fazer
com esse homem que desfalece
essas flores que murcham
e esse dinheiro
esse dinheiro que roda
que não deixa de rodar.
 ( de Jacques Prévert)

quinta-feira, 28 de março de 2013

Deve chamar-se tristeza

Deve chamar-se tristeza
isto que não sei que seja
que me inquieta sem surpresa
saudade que não deseja.

Sim, tristeza - mas aquela
que nasce de conhecer
que ao longe está uma estrela
e ao perto está não a ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
de entre as mãos ricas de pó.
(de Fernando pessoa)

quarta-feira, 27 de março de 2013

Canção de outono


Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão...

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...
(de Cecília Meireles)

terça-feira, 26 de março de 2013

Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
(de Mário Quintana)

segunda-feira, 25 de março de 2013

Cântico negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse.
Quando me dizem: "vem por aqui!" 
Eu olho-os com olhos lassos
(Há nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta: 
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem- vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos
redemoinhar aos ventos,
como farrapos, arrastar os pés sangrentos
A ir por aí!
(de José Régio)

domingo, 24 de março de 2013

Sem regresso

Tomou na vida o autocarro errado
e em vez de sair na primeira paragem
continuou a viagem
para nenhum lado.

Perdeu-se do passado que não teve
e do futuro que não tem,
mero episódio de novela breve
que não acaba bem.

E um fumo pesado e espesso
diz-lhe que não há regresso.
(de Turquato da Luz, falecido hoje)

sábado, 23 de março de 2013

Voz que se cala

Amo as pedras, os astros e o luar
que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera, que entende a voz do muro
e dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...
(de Florbela Espanca)

sexta-feira, 22 de março de 2013

O Nero dos meus sonhos

sou o Nero dos meus sonhos
louco de pé no terraço
soltando berros medonhos
pelos sonhos que desfaço

meus sonhos servem de pasto
às labaredas da torre
não deixarei nem o rasto
de nenhum sonho que morre

minha torre de babel
não há livro nem compêndio
 não há tinta nem pincel
que descreva este incêndio

sou o nero dos meus sonhos!
(de Tibério Gil)

quinta-feira, 21 de março de 2013

O relógio

Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.
( de Ary dos Santos)

Introdução

Este blog destina-se a homenagear os poetas da minha preferência, divulgando as suas obras. Inclui poetas do passado e do presente, destes, os que se vão evidenciando na blogosfera.